Desde que a governadora Raquel Lyra (PSDB) assumiu o Governo do Estado, há quase dois anos, Pernambuco está sem atuação do órgão autônomo e independente responsável por fiscalizar unidades de privação de liberdade. As atividades do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura foram paralisadas pelo decreto 54.393/2023, de janeiro de 2023, que exonerou servidores em cargos comissionados e suspendeu gratificações. Até agora, o governo não realizou uma nova seleção dos peritos que compõem o órgão.
A Marco Zero abordou o assunto em matéria publicada em junho do ano passado. Desde então, a resolução do problema se arrasta, em meio a denúncias de violações de direitos humanos, principalmente nas unidades prisionais.
O Governo de Pernambuco está sendo acusado de tentar aparelhar o órgão. Integrantes do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, movimentos e organizações sociais criticam a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos por não ter colocado na rua um edital de chamamento público para a recomposição do órgão, como aconteceu na última seleção de peritos, em 2014.
Em vez disso, a pasta, segundo as denúncias, tem pressionado pela escolha de peritos a partir de uma lista de nomes pré-selecionados, o que poderia, dizem os especialistas, comprometer a independência política e institucional do mecanismo.
A MZ aguarda um posicionamento da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos sobre o assunto desde o dia 5 de dezembro, dia em que houve um protesto no Monumento Tortura Nunca Mais, centro do Recife — a foto que abre esta matéria é daquela manifestação. O ato contou com membros do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), da Pastoral Carcerária, da Associação de familiares de dependentes químicos presos e apenados do estadodePernambuco (Afadequipe) e do grupo Desencarcera PE.
Pernambuco foi um dos pioneiros no Brasil a instituir o órgão. A pauta já chegou ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, mas ainda não houve uma resolução a nível estadual.
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
Previsto em lei (Lei 14.863/2012), o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura exerce a defesa dos direitos humanos de pessoas privadas de liberdade por meio de visitas regulares a diferentes sistemas, como o prisional, o socioeducativo, as instituições de longa permanência para idosos, os abrigos, as delegacias, as comunidades terapêuticas e os hospitais psiquiátricos.
Os peritos do órgão também podem requisitar a instauração de procedimentos criminais e administrativos, caso se constatem indícios de prática de tortura ou de tratamento cruel, desumano e degradante.
“Precisamos de um edital público, uma seleção simplificada para prover esses cargos (de peritos). O governo está desobedecendo a lei e negando a vigência a um tratado internacional chamado Protocolo Facultativo à Convençao contra a Tortura, da ONU, que institui os mecanismos preventivos contra a tortura (do qual o Brasil é signatário desde 2007)”, denuncia Camila Antero, membra do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
“Quem perde são as pessoas privadas de liberdade, que estão nas prisões, no socioeducativo, em instituições de saúde mental e asilos e precisam dessa atuação para prevenir violações de seus direitos fundamentais”, complementa.
A reportagem teve acesso a um ofício da secretaria assinado pela secretária de Justiça, Direitos Humanos e Prevenção à Violência, Joana D’Arc Silva Figueiredo, que remete à coordenação compartilhada do comitê estadual currículos referenciados pela pasta e oportuniza ao comitê o direito de sugerir nomes. O documento atesta a insistência do governo em não optar por uma seleção pública.
Raquel Lyra e o retrocesso
A presidente do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), representante dos beneficiários das medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Complexo do Curado, Wilma Melo, reforça que a governadora Raquel Lyra “travou o funcionamento do mecanismo estadual” justamente quando se comemoram os 40 anos da Convenção Internacional Contra a Tortura. “O Brasil é signatário, mas agovernadora não”, critica.
Wilma informa ainda que, de julho até o momento, já são 36 denúncias encaminhadas pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, principalmente referentes a atuação de serventuários, ou seja, de servidores públicos e policiais penais.
A advogada do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop) Maria Clara D’Ávila afirma que a organização, por meio dos conselhos, tem recebido diversas denúncias de violações de direitos humanos, principalmente vindas dos presídios de Igarassu, Itaquitinga 2 e Cotel (Centro de Observação Criminológica e Triagem Professor Everardo Luna).
“Têm sido registradas diversas violações e não temos nenhum mecanismo que tenha competência de fiscalização imparcial, que é um mecanismo para poder realizar as inspeções nas unidades, tanto em caráter preventivo quanto em caráter de apuração dessas denúncias”, explica, lembrando que isso também vale para o sistema socioeducativo.
O Gajop compõe o Conselho da Comunidade da Capital e o Conselho da Comunidade da Primeira Vara Regional de Execução Penal, órgãos que monitoram unidades de privação de liberdade e cumprimento de pena.
“A política de prevenção e combate à tortura está muito prejudicada, praticamente inexistente em Pernambuco. É um retrocesso o fato de termos sido o segundo estado a implementar um mecanismo no Brasil, mas sermos o primeiro a desinstalar, a destituir o mecanismo de sua existência. Temos enfrentado entraves no diálogo com o governo”, coloca Maria Clara.
“O governo Raquel Lyra está tentando deliberadamente deturpar o caráter do mecanismo, tentando uma ingerência sobre esse mecanismo. É por isso que as tratativas estão o tempo todo travadas, porque o governo não quer a instalação de um mecanismo que de fato seja independente e autônomo para realizar as fiscalizações de unidades de privação de liberdade no estado, que, nós sabemos, são conhecidas por serem sistematicamente violadoras de direitos”, avalia.
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