Por Paulo Mustefaga*
A baixa confiança com que os agentes econômicos receberam o pacote de ajuste fiscal do governo federal fez com que o dólar superasse a marca histórica de R$ 6,00, pressionando os já preocupantes índices inflacionários e elevando as expectativas das taxas futuras de juros, as quais tendem a impactar ainda mais as despesas da União e a já elevada e alarmante escalada da dívida pública, fatores que podem comprometer a capacidade de crescimento da economia brasileira nos próximos anos.
Nesse ambiente conturbado e de incertezas do último mês de 2024, os consumidores e contribuintes têm ainda outros motivos de preocupação. É que o Senado Federal deverá votar, na próxima semana, o PLP 68/2024, que regulamenta os novos tributos instituídos com a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que trata da Reforma Tributária sobre o Consumo: a CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência federal; o IBS – Imposto sobre Bens e Serviços, de âmbito estadual e municipal; e o IS – Imposto Seletivo, tributo federal destinado a regular o consumo de itens que causam externalidades negativas à saúde e ao meio ambiente.
Diversos setores da economia se mobilizam, fazem cálculos e elaboram estudos de impactos das mudanças tributárias sobre suas atividades. Entre as questões do PLP 68 que têm suscitado grande debate estão os regimes especiais e diferenciados de tributação, dos quais fazem parte a Cesta Básica Nacional de Alimentos, com alíquota zero, e a cesta básica estendida, com redução de 60% da alíquota padrão da CBS e do IBS.
As carnes, por sua vez, estiveram no centro do debate em torno da composição da cesta básica nacional, com alíquota zero, desde a apresentação, por parte do Poder Executivo, do PLP 68 ao Congresso Nacional. Isso porque tais produtos, embora atendam a todas as características definidas na EC 132 para composição de uma Cesta Básica Nacional de Alimentos abrangente e nutricionalmente adequada, foram rebaixados para operações que sofreriam tributação equivalente a 40% das alíquotas base da CBS e do IBS. Dessa forma, as carnes seriam taxadas em 10,6%, considerando uma alíquota padrão então estimada em 26,5%.
Análise e votação do PLP 68 na Câmara dos Deputados
Durante a tramitação da matéria na Câmara dos Deputados, representantes do governo argumentavam que eventual inclusão das carnes na cesta básica nacional teria o potencial de elevar em 0,53 ponto percentual a alíquota padrão dos tributos, a qual superaria, assim, os 27% e colocaria o Brasil na posição de País com o maior IVA (imposto sobre valor agregado) do mundo. Argumentou-se, ainda, que a redução em 60% da alíquota padrão seria suficiente para manter a neutralidade tributária das carnes na reforma tributária.
Consultores independentes, por sua vez, estimaram que a desoneração total carnes, com alíquota zero, teria impacto de no máximo 0,28 ponto percentual sobre a alíquota geral e não 0,53 conforme apontavam técnicos do governo.
Diante do debate e das polêmicas que surgiram, opiniões as mais diversas foram apresentadas de um lado a outro, algumas das quais mais confundiam do que ajudavam a entender a complexidade da matéria. É importante que, para que se possa fazer um debate produtivo e transparente, com vistas a atender aos interesses da sociedade, os argumentos apresentados sejam embasados em informações técnicas corretas e transparentes.
Assim, é importante, inicialmente, considerar que, pelo regime tributário atual, as carnes já são desoneradas com alíquota zero para os tributos federais, PIS e COFINS, conforme a cesta básica instituída pela Lei nº 12.839, de 2013. No caso estadual, considerando todos os incentivos concedidos no âmbito do ICMS, como desonerações e concessões de créditos presumidos, estima-se que as carnes sejam tributadas entre zero e 4%, com uma incidência média de 2%.
Ou seja, ao contrário do que se argumentou, as carnes não teriam carga tributária neutra com o PLP 68. Na verdade, tais alimentos sofreriam aumento de tributação entre 8% e 10%. Posteriormente, membros da própria equipe econômica responsável pela elaboração do PLP 68 reconheceram, em reunião no Senado Federal, que os incentivos estaduais de ICMS não haviam sido levados em consideração no cálculo da carga tributária das carnes, do que se depreende que os números apresentados para o setor foram superestimados.
Mesmo que, para alguns, uma tributação adicional de 8% a 10% possa parecer pouco, em um País que possui 59 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza (IBGE), o aumento do preço em função de impostos pode representar, para significativa parcela da população, menor acesso a um alimento essencial para uma vida saudável. Ademais, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, cerca de 72,4% dos brasileiros vivem em famílias com alguma dificuldade para pagar suas despesas mensais.
Resumindo, considerando a incidência de PIS, COFINS e ICMS, os consumidores pagam uma carga tributária de até 4% na aquisição de carne bovina. Pelo PLP 68 enviado ao Congresso Nacional, a carga tributária com a incidência da CBS e do IBS poderia representar um impacto de até 10% a mais no bolso dos consumidores.
Por outro lado, em relação ao argumento de que a inclusão das carnes na cesta básica nacional levaria a um aumento da alíquota geral da CBS e do IBS, é importante considerar que, independentemente de quem esteja certo nos cálculos, governo ou consultores independentes, fato é que voltar a tributar as carnes representa um verdadeiro retrocesso social. Significa, ainda, a revogação de um direito social à alimentação conquistado há muitos anos pelos brasileiros, em especial os de baixa renda.
É importante ressaltar que a Constituição Federal consagrou o direito social à alimentação (Art. 6°) e a Emenda Constitucional nº 132, no seu art. 8º, instituiu a Cesta Básica Nacional de Alimentos, a ser composta por produtos destinados à alimentação humana, considerando a diversidade regional e cultural da alimentação do País e garantindo a alimentação saudável e nutricionalmente adequada, em observância ao direito social à alimentação, os quais terão as alíquotas do IBS e da CBS reduzidas a zero.
Alimentando ainda mais a polêmica sobre as carnes, alguns especialistas defendiam que o cashback seria melhor instrumento do que a desoneração para beneficiar pessoas de classes de renda menos favorecidas. Tal argumento também cai por terra quando se verifica que, de acordo com o texto do PLP 68, apenas 3 produtos – energia elétrica, água e esgoto e gás natural – terão devolução integral dos valores pagos para a CBS e de 20% para o IBS, para pessoas incluídas no cadastro único (CadÚnico) dos programas sociais administrados pelo governo federal, com renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo (art. 112 da versão do PLP 68 aprovada na Câmara dos Deputados).
Para os demais produtos não enquadrados naquelas categorias, a devolução será de 20% do valor pago tanto para a CBS como para o IBS. Ou seja, caso as carnes ficassem na categoria da cesta básica estendida (com redução de 60% da alíquota padrão), a tributação incidente seria de 10,6%, com devolução na forma de cashback de 2,12%, apenas para os beneficiários do bolsa família. Ainda assim, mesmo esses contribuintes teriam que desembolsar um adicional de até 8,48% a mais para ter acesso ao alimento básico. Todas as demais classes de baixa renda não enquadradas no cadastro único do Bolsa Família arcariam com 100% do valor do tributo. Mais uma vez é preciso deixar claro que isso representa menor acesso à carne por parte de grandes faixas da população brasileira. Assim, mesmo considerando a importância que terá o cashback, é fundamental que as carnes sejam mantidas na cesta básica com alíquota zero para garantir o amplo direito à alimentação por parte das camadas de baixa renda da população.
Outros analistas tentaram fazer verdadeiros malabarismos intelectuais para tentar demonstrar que a isenção sobre as carnes não beneficiaria os consumidores e só serviria para aumentar o lucro das empresas. Não é preciso dispor de grandes conhecimentos em matemática para concluir que um tributo sobre valor agregado, seja de 27% ou de 10,6%, representa um custo a ser repassado para o consumidor, limitando seu acesso ao produto, especialmente no caso de gêneros agropecuários, cuja oferta sofre com períodos cíclicos e sazonais de restrição da oferta, como ocorre agora com a pecuária de corte. E afinal de contas, como se afirmou diversas vezes em discursos sobre a reforma tributária, o custo do IVA recai sobre o bolso do consumidor.
Superando as divergências e os debates naturais ocorridos durante a tramitação do PLP 68 e contando com forte apoio da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), e de parlamentares ligados ao governo que contrariaram posição da equipe econômica, o relator do PLP 68 na Câmara dos Deputados anunciou, no dia da votação, apoio para aprovação de um destaque (emenda de plenário) que visava a inclusão das carnes na Cesta Básica Nacional de Alimentos com alíquota zero. Ao final, o destaque foi aprovado por 477 votos favoráveis e 3 contrários.
Encerrava-se assim, na Câmara dos Deputados, com ampla vantagem aos consumidores, a polêmica das carnes na cesta básica nacional com alíquota zero, sendo mantido no texto do PLP 68/2024 o direito social conquistado há mais de 10 anos.
Decisão no Senado Federal
O Senado Federal está agora diante de decisões que poderão ter impactos profundos sobre a economia e sobre o bolso dos consumidores por muitos anos. Nos últimos 12 meses, a inflação medida pelo IPCA já ultrapassa o teto da meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (3% com margem de 1,5 ponto percentual para mais ou para menos). O item alimentos e bebidas do IPCA acumula alta de 6,65% no mesmo período, enquanto as carnes pressionam para cima o índice geral, com alta de 8,33% no acumulado de 12 meses.
O País também vive um momento de intensas exportações, o que é bom para a balança comercial brasileira, e o dólar em alta representa um estímulo adicional para as vendas internacionais.
Outro fator que puxa para cima os preços é uma mudança do ciclo pecuário brasileiro. Embora a nossa pecuária venha se desenvolvendo e aprimorando suas tecnologias e ganhos de produtividade, o setor ainda apresenta ciclos e sazonalidades de produção, caracterizados por períodos alternados de aumentos e restrições de ofertas que influenciam nos preços dos animais para abate.
Considerando os últimos 12 meses, os preços da arroba do boi gordo medidos pelo Indicador Cepea acumulam alta de 26,61%, muito superior aos aumentos dos preços da carne no varejo, cujo índice foi de 8,33%. Significa dizer que os aumentos nos preços do boi gordo ainda não foram integralmente repassados para os consumidores, o que deve ocorrer ao longo dos próximos meses.
A partir do segundo semestre de 2024 a curva de preços do boi gordo subiu acentuadamente e a tendência é de que, nos próximos 2 anos, numa situação de normalidade de mercado, os preços devem permanecer em patamares mais elevados em relação ao biênio 2023/2024, pressionando ainda mais os preços ao consumidor.
Nesse cenário, a combinação de inflação alta e tributação sobre os alimentos pode prejudicar imensa parcela da população e agravar os já desgastados indicadores da política econômica brasileira.
É importante que se diga que o Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina e pode se orgulhar de uma indústria de primeira linha que investiu muito e se profissionalizou nas últimas décadas, exportando atualmente para mais de 150 mercados, entre os maiores e mais exigentes do mundo, como Estados Unidos, União Europeia e China, além de abastecer o mercado interno com a mesma qualidade e competência.
Mas nem sempre foi assim, até o início dos anos 90 o Brasil dependia de importações de carne bovina para complementar o abastecimento interno. A evolução da pecuária e os investimentos realizados nos controles sanitários do rebanho e na qualidade da carne bovina alçaram o Brasil à posição de maior exportador mundial, posição que garante a geração empregos e riquezas para o País.
Recentemente a carne brasileira foi alvo de críticas injustas por parte de redes de supermercados europeias e o setor conseguiu, com altivez, mostrar aos seus difamadores que o Brasil deve ser respeitado e não aceita ser achincalhado por interesses meramente protecionistas de competidores menos eficientes. Afinal, além de cumprir com rigorosos requisitos sanitários e ambientais, o agro brasileiro não conta com os vultosos subsídios dos países desenvolvidos para continuar produzindo e crescendo.
A desoneração do PIS/COFINS e do ICMS para a carne bovina e a equalização de distorções tributárias que afetavam a competitividade do setor tiveram importante papel no processo de crescimento e desenvolvimento da cadeia agroindustrial da carne bovina, permitindo novos investimentos e ganhos de eficiência de diversas indústrias frigoríficas.
Atualmente o brasileiro pode consumir carne bovina adquirida em grandes redes de supermercados, com os mais elevados padrões de qualidade e certificação, equiparada à carne que é exportada para os mais exigentes mercados mundiais. Com isso, o mercado informal que existia antes e o comércio de produtos sem selo de qualidade reduziram-se significativamente.
É importante que o Brasil continue trilhando o caminho do crescimento e desenvolvimento de sua produção de carnes, alimentando não apenas a população brasileira, mas também contribuindo para abastecer diversos mercados mundiais.
Para seguir nesse caminho, é importante que o setor não seja novamente exposto a uma tributação que não condiz com a realidade social do País e que venha a provocar distorções tributárias que afetem sua competitividade.
Voltar a tributar a carne para o consumidor brasileiro levará a um menor acesso ao produto por parte de grande parcela de baixa renda da população, diminuindo o consumo e afetando especialmente a pequena e média indústria que abastece predominantemente o mercado interno. Além disso, pode ser um incentivo ao consumo de produtos sem a devida certificação, em regiões carentes, colocando em risco a saúde de consumidores e até mesmo o setor exportador.
Assim, além das decisões importantes que o governo e o Congresso Nacional terão que tomar para definir os rumos da economia brasileira nos próximos anos, cabe agora, também, ao Senado Federal, decidir se manterá as carnes na Cesta Básica Nacional de Alimentos com alíquota zero, uma conquista do consumidor brasileiro, ou se reverterá o que foi decidido pela Câmara dos Deputados.
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