As revelações recentes de um plano de golpe de Estado, no final de 2022, que envolvia a eliminação do Presidente e do Vice-Presidente eleitos e de um Ministro do Supremo Tribunal Federal assustaram o país. Já conhecíamos vários fatos que apontavam para a participação de militares em atos contrários à democracia, desde que o Coronel Mauro Cid aceitou o benefício da delação premiada. Porém, agora, as informações são mais graves, por revelarem uma articulação institucional de assalto violento ao poder.
É inevitável, nesse contexto, pensarmos mais detidamente sobre o papel das Forças Armadas em nosso país. Não podemos ser ingênuos de imaginar que o desenho institucional vigente nada tem a ver com esses fatos.
Vivemos, desde 1988, a nossa mais sólida experiência democrática. Mas, nos últimos anos, temos experimentado testes difíceis, com o crescimento de forças políticas claramente antidemocráticas, o que levou a uma verdadeira queda de braços entre elas e as instituições democráticas. É preciso reforçar instituições e procedimentos que dificultem ataques diretos à democracia.
Considero que precisamos, urgentemente, proibir a militares da ativa (a) o exercício de cargos na Administração civil e (b) a candidatura a cargos eletivos. Além disso, no caso das candidaturas, pensar uma quarentena a ser cumprida por quem vai para a inatividade.
Hoje, a Constituição permite essas duas portas gigantes para a politização das forças armadas. O art. 142, § 3º, permite ao militar exercer cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, devendo, no período de exercício, ficar “agregado ao respectivo quadro”. O art. 14, § 8º, diz que “o militar alistável é elegível”, o que só exclui o conscrito da possibilidade de se candidatar. Quem tem menos de dez anos de serviço afasta-se. Quem tem mais de dez anos de serviço afasta-se para ser candidato, indo para a inatividade, caso eleito, ou voltando para o serviço, caso não eleito. Resumindo: militares podem sair para exercer cargos comissionados ou funções temporárias na Administração civil e retornar. Podem, também, concorrer a cargos eletivos e, quando não eleitos, retornar.
Essas duas normas não só permitem como incentivam a mistura de militares com forças políticas. Cargos comissionados são postos nos quais são colocadas pessoas de confiança. A escolha dos nomes que serão titulares de tais cargos é uma escolha política. Mergulhar um militar no cotidiano das escolhas políticas do Executivo e, depois, trazê-lo de volta para a vida militar é uma prática nociva. Mais destrutiva, ainda, é a possibilidade de retorno ao serviço de um militar que foi para um partido político, disputou a indicação, foi indicado, fez campanha eleitoral e não foi eleito. Traz uma carga muito forte do debate político-eleitoral para a instituição.
Essas normas constitucionais foram construídas em 1988, ainda sob forte tutela militar sobre o poder civil. A ditadura acabara há pouco e não era fácil, naquele contexto, desenhar as novas instituições militares, já que, para muitos, a adoção de restrições mais fortes poderia parecer um tipo de provocação. As atuais notícias sobre a participação de militares em planos de golpes mostram que precisamos evoluir no aperfeiçoamento das normas sobre essas instituições. Manter os militares em atividades essencialmente é uma forma de profissionalizar as Forças Armadas.
O monopólio da violência legítima pelo Estado é uma característica do Estado moderno. Para isso, são criadas (a) forças de segurança, que terão atuação interna, coibindo ou reprimindo crimes, e (b) forças militares, que atuarão na defesa externa do país. Agentes públicos investidos desses poderes precisam estar contidos, limitados. As preocupações com possíveis abusos de poder por quem exerce os poderes dados ao Estado devem ser redobradas quando pensamos em agentes armados.
As democracias constitucionais mais consolidadas preveem regras especificamente voltadas a garantir a supremacia do poder civil sobre o poder militar. Os Estados Unidos, por exemplo, preservam esse princípio com muito cuidado. Lá, não é nem que militar da ativa ou que esteja há menos de sete anos na reserva seja nomeado para Secretário de Defesa.
Nunca seremos uma democracia forte enquanto permitirmos algum tipo de politização das Forças Armadas. Evidentemente, a mudança dessas duas normas não funcionará como uma fórmula mágica, impedindo totalmente essa politização. Mas, é claro, também, que é necessário fechar essas portas, pois elas permitem e até incentivam a participação de militares na política e na Administração pública. Essa defesa da profissionalização deve ser tarefa de toda a sociedade e interessa, também, aos militares não golpistas. Que tenhamos a capacidade de aproveitar a conjuntura para corrigir normas e aperfeiçoar as instituições.
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