No Sertão do São Francisco existe um falso conceito de que a seca maltrata menos do que em outras regiões, por causa da perenidade e vastidão das águas do Velho Chico, o rio da integração nacional. Tudo ilusão.
A
dor muitas vezes é muito maior. E aumenta na medida em que o rio vai se
distanciando e pela frente se abrindo uma terra pedregosa, que muda de
cor, hora vermelha, que nada em se plantando dá, hora branca, da
desertificação.
Nos
últimos 30 anos, as águas do rio desagregaram socialmente, forjando um
separatismo lamentável, mas que parece irreversível: de um lado, os que
enriquecem irrigando; do outro, os que nunca conseguem sair da miséria,
porque lhes falta justamente a água que corre nos canais transportando a
riqueza de poucos privilegiados.
No
São Francisco de vidas secas, mesmo com tanta água desperdiçada e que
tem levado o Governo a tirar do papel um projeto do Império – a
Transposição – ainda se anda pé, quando a pobreza passa da conta. O
jumento foi substituído por motos, o transporte escolar se improvisa em
bicicleta para Roberta Neves Oliveira, 32 anos.
Do
sítio Mulungu até o centro de Rajada, distrito de Petrolina, num
percurso de 3 km, Roberta cumpre a rotina diária de levar os dos filhos à
escola de bicicleta, um na frente e outro atrás, porque ali não há
transporte oficial do poder público para recolher a garotada.
“Para
garantir o futuro dos filhos ninguém se cansa não, moço”, diz ela, sem
reclamar do calor infernal de 40 graus e da estrada de chão batido.
Leônidas, 9 anos, e Francisco, 7 anos, se agarram fortemente à mãe, desconfiados com gente estranha que aparece por aquelas bandas. Já aprenderam a ler e gostam da escola. “Lá, a gente aprende e passa bem”, diz Leônidas, referindo-se à merenda escolar, reforçada com produtos regionais, como batata, macaxeira e angu.
Leônidas, 9 anos, e Francisco, 7 anos, se agarram fortemente à mãe, desconfiados com gente estranha que aparece por aquelas bandas. Já aprenderam a ler e gostam da escola. “Lá, a gente aprende e passa bem”, diz Leônidas, referindo-se à merenda escolar, reforçada com produtos regionais, como batata, macaxeira e angu.
Já
os irmãos Erismar e Tainara, que estudam em Pau Ferro, também distrito
de Petrolina, não têm bicicleta. Foram encontrados andando a pé na
estrada que liga o sítio onde moram até a vila em que a escola está
instalada. “A gente já está acostumado, é bem pertinho, com meia hora a
gente chega no destino”, diz Tainara.
No
sítio Pedreiras, onde moram, o pai José Francisco da Silva, 35 anos,
perdeu tudo: a lavoura de milho e feijão e as duas criações – uma
novilha, abatida de fome e seis cabras, que teve que vender a preço de
banana para conseguir alguma renda. A água ainda é servida de uma
cisterna, que não deve resistir por muito tempo.
José
Cazuza, 85 anos, encontrado no entardecer de ontem em sua casa na
Chapada do Sergipe, em Dormentes, é um homem cheio de sabedoria e
conhecedor do drama dos sertões de vidas secas. Enquanto observa no
quintal de casa as poucas cabrinhas que restam a matar a fome comendo
xique-xique, vai abrindo o coração.
Diz
que de 1932 para os tempos presentes nunca viu uma estiagem tão
devastadora. “Em 32, muita gente bateu as asas pela fraqueza da fome e
da falta de assistência do governo. Foi uma seca terrível, só escapou
quem se segurou nos poderes do homem lá de cima. Esta seca agora está
sendo terrível com os animais. Os homens ainda estão se virando, mas do
jeito que vai vaca, boi, cabra, jumento, vai tudo morrer”, profetiza.
Engraçado
e bem-humorado, “seu” Cazuza diz que veio ao mundo para procriar. Bate
no peito e se acha um bom produtor. E é mesmo. Filhos? Fez 16. E diz a
razão de tantos herdeiros: “Quando eu cheguei por aqui, nesse mundo sem
fim e deserto, vi que havia pouca gente e aí resolvi povoar a região”,
diz, dando gargalhadas.
Com
o povoamento, espalhou a filhada para tudo que é lugar. “Tem filho na
Bahia, em São Paulo, no Recife, em Caicó, no Rio e em Petrolina”,
acrescenta o velho bom de cama, que hoje passa o tempo recordando o
passado e contando causos para a vizinhança, que se diverte com a sua
presença de espírito.
E
numa detalhe ele tem razão: como na seca de 1932, recorrer à queima do
mandacaru para eliminar os espinhos e servir de ração para o gado tem
sido a sina diária do pecuarista Raimundo de Antônio, 66 anos, da
localidade de Mudobim, a 10 km de Dormentes. Ali, ao entardecer, ele
prepara a única ração que ainda resta em frente ao curral.
O
fogo que queima os espinhos do xique-xique é preparado num tonel, com
madeira seca e palha. Ele busca o alimento distante dali, porque na sua
fazenda já acabou há muito tempo. “Não se acha mandacaru aqui com mais
facilidade como antigamente. A gente tem que andar léguas e mais
léguas”, diz Raimundo, que adquiriu um trato impressionante de arte de
queimar os espinhos do cacto, espécie nativa da caatinga.
Por
ser a única ração na região, o mandacaru virou a tábua de salvação para
milhares de criadores desesperados. “É comer ou morrer”, afirma
Raimundo, testemunhando assim que não existem alternativas, mesmo com as
águas do São Francisco passando a 30 km dali, em canais e adutoras.
Rose
Leite, 28 anos, não se deu bem em Petrolina como doméstica e resolveu
voltar para o distrito de Pau Ferro, onde a família mora sem água, que
falta na Adutora do São Francisco, sem perspectiva de emprego, algo raro
na região, e sem comunicação com o mundo. Ali, a internet chegou, via
sinais de rádio, mas celular não.
O
que ainda liga a comunidade com as terras da civilização são os velhos
orelhões que, aos poucos, estão virando peças de museu nos grandes
centros devido à popularização da telefonia móvel. “Aqui,
esse orelhão vale ouro, mas de vez em quando deixa a gente na mão”, diz
Rose, que recorre ao aparelho todos os dias para se comunicar com a
família em Petrolina e São Paulo.
Rotina
mais desgraçada vive Hermenegildo Gonçalves da Silva, 54 anos,
desempregado pela seca, que torrou seu milharal na roça no sítio
Porteira, próximo ao assentamento Terra da Liberdade. Vive, hoje, de
parcos recursos da cata de pedra e do bolsa estiagem, programa
complementar de renda criado pelo Governo do Estado, de cinco parcelas
de R$ 80.
Por
sorte sua, os nove filhos não passam fome porque a mulher Rosinalda
também está contemplada pelo programa Bolsa Família, este do Governo
Federal. A 100 metros do pátio da sua gleba, pecuaristas da região
criaram um cemitério para jogar o gado que vem morrendo de fome na
região.
“Isso
aqui virou uma rotina. Todo dia vejo alguém jogar bicho morto – vaca,
cabra, ovelha e até cavalo”, diz Hermenegildo, que diz ter ainda uma
novilha em seu sítio, deve abrir mão nos próximos dias por falta de
condições para manter. “Não dá
mais para continuar tirando o dinheiro do bolsa família para mantê-la.
Toda vez que a gente vai comprar o feijão e a farinha tem que comprar o
farelo também. Não dá mais”, diz.
Há
mais de 100 anos, em Os Sertões, Euclides da Cunha mostrou um Brasil
novo, outro Brasil, o Brasil verdadeiro do Interior, que chocou, porque
saltou na cara das nossas elites letradas. Cem anos depois, entretanto,
muita gente continua sem escapar da morte severina, mesmo numa região
com tanta água, como o São Francisco.
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