PREFEITURA DE TRINDADE

SARGENTO EDYMAR

20 novembro 2012

Reféns da seca no sertão

Reféns da seca XIII


No Sertão do São Francisco existe um falso conceito de que a seca maltrata menos do que em outras regiões, por causa da perenidade e vastidão das águas do Velho Chico, o rio da integração nacional. Tudo ilusão.
A dor muitas vezes é muito maior. E aumenta na medida em que o rio vai se distanciando e pela frente se abrindo uma terra pedregosa, que muda de cor, hora vermelha, que nada em se plantando dá, hora branca, da desertificação.
Nos últimos 30 anos, as águas do rio desagregaram socialmente, forjando um separatismo lamentável, mas que parece irreversível: de um lado, os que enriquecem irrigando; do outro, os que nunca conseguem sair da miséria, porque lhes falta justamente a água que corre nos canais transportando a riqueza de poucos privilegiados.
No São Francisco de vidas secas, mesmo com tanta água desperdiçada e que tem levado o Governo a tirar do papel um projeto do Império – a Transposição – ainda se anda pé, quando a pobreza passa da conta. O jumento foi substituído por motos, o transporte escolar se improvisa em bicicleta para Roberta Neves Oliveira, 32 anos.
Do sítio Mulungu até o centro de Rajada, distrito de Petrolina, num percurso de 3 km, Roberta cumpre a rotina diária de levar os dos filhos à escola de bicicleta, um na frente e outro atrás, porque ali não há transporte oficial do poder público para recolher a garotada.
“Para garantir o futuro dos filhos ninguém se cansa não, moço”, diz ela, sem reclamar do calor infernal de 40 graus e da estrada de chão batido.
Leônidas, 9 anos, e Francisco, 7 anos, se agarram fortemente à mãe, desconfiados com gente estranha que aparece por aquelas bandas. Já aprenderam a ler e gostam da escola. “Lá, a gente aprende e passa bem”, diz Leônidas, referindo-se à merenda escolar, reforçada com produtos regionais, como batata, macaxeira e angu.

Já os irmãos Erismar e Tainara, que estudam em Pau Ferro, também distrito de Petrolina, não têm bicicleta. Foram encontrados andando a pé na estrada que liga o sítio onde moram até a vila em que a escola está instalada. “A gente já está acostumado, é bem pertinho, com meia hora a gente chega no destino”, diz Tainara.
No sítio Pedreiras, onde moram, o pai José Francisco da Silva, 35 anos, perdeu tudo: a lavoura de milho e feijão e as duas criações – uma novilha, abatida de fome e seis cabras, que teve que vender a preço de banana para conseguir alguma renda. A água ainda é servida de uma cisterna, que não deve resistir por muito tempo.

José Cazuza, 85 anos, encontrado no entardecer de ontem em sua casa na Chapada do Sergipe, em Dormentes, é um homem cheio de sabedoria e conhecedor do drama dos sertões de vidas secas. Enquanto observa no quintal de casa as poucas cabrinhas que restam a matar a fome comendo xique-xique, vai abrindo o coração.
Diz que de 1932 para os tempos presentes nunca viu uma estiagem tão devastadora. “Em 32, muita gente bateu as asas pela fraqueza da fome e da falta de assistência do governo. Foi uma seca terrível, só escapou quem se segurou nos poderes do homem lá de cima. Esta seca agora está sendo terrível com os animais. Os homens ainda estão se virando, mas do jeito que vai vaca, boi, cabra, jumento, vai tudo morrer”, profetiza.
Engraçado e bem-humorado, “seu” Cazuza diz que veio ao mundo para procriar. Bate no peito e se acha um bom produtor. E é mesmo. Filhos? Fez 16. E diz a razão de tantos herdeiros: “Quando eu cheguei por aqui, nesse mundo sem fim e deserto, vi que havia pouca gente e aí resolvi povoar a região”, diz, dando gargalhadas.
Com o povoamento, espalhou a filhada para tudo que é lugar. “Tem filho na Bahia, em São Paulo, no Recife, em Caicó, no Rio e em Petrolina”, acrescenta o velho bom de cama, que hoje passa o tempo recordando o passado e contando causos para a vizinhança, que se diverte com a sua presença de espírito.
E numa detalhe ele tem razão: como na seca de 1932, recorrer à queima do mandacaru para eliminar os espinhos e servir de ração para o gado tem sido a sina diária do pecuarista Raimundo de Antônio, 66 anos, da localidade de Mudobim, a 10 km de Dormentes. Ali, ao entardecer, ele prepara a única ração que ainda resta em frente ao curral.

O fogo que queima os espinhos do xique-xique é preparado num tonel, com madeira seca e palha. Ele busca o alimento distante dali, porque na sua fazenda já acabou há muito tempo. “Não se acha mandacaru aqui com mais facilidade como antigamente. A gente tem que andar léguas e mais léguas”, diz Raimundo, que adquiriu um trato impressionante de arte de queimar os espinhos do cacto, espécie nativa da caatinga.
Por ser a única ração na região, o mandacaru virou a tábua de salvação para milhares de criadores desesperados. “É comer ou morrer”, afirma Raimundo, testemunhando assim que não existem alternativas, mesmo com as águas do São Francisco passando a 30 km dali, em canais e adutoras.

Rose Leite, 28 anos, não se deu bem em Petrolina como doméstica e resolveu voltar para o distrito de Pau Ferro, onde a família mora sem água, que falta na Adutora do São Francisco, sem perspectiva de emprego, algo raro na região, e sem comunicação com o mundo. Ali, a internet chegou, via sinais de rádio, mas celular não.
O que ainda liga a comunidade com as terras da civilização são os velhos orelhões que, aos poucos, estão virando peças de museu nos grandes centros devido à popularização da telefonia móvel.  “Aqui, esse orelhão vale ouro, mas de vez em quando deixa a gente na mão”, diz Rose, que recorre ao aparelho todos os dias para se comunicar com a família em Petrolina e São Paulo.

Rotina mais desgraçada vive Hermenegildo Gonçalves da Silva, 54 anos, desempregado pela seca, que torrou seu milharal na roça no sítio Porteira, próximo ao assentamento Terra da Liberdade. Vive, hoje, de parcos recursos da cata de pedra e do bolsa estiagem, programa complementar de renda criado pelo Governo do Estado, de cinco parcelas de R$ 80.
Por sorte sua, os nove filhos não passam fome porque a mulher Rosinalda também está contemplada pelo programa Bolsa Família, este do Governo Federal. A 100 metros do pátio da sua gleba, pecuaristas da região criaram um cemitério para jogar o gado que vem morrendo de fome na região.
“Isso aqui virou uma rotina. Todo dia vejo alguém jogar bicho morto – vaca, cabra, ovelha e até cavalo”, diz Hermenegildo, que diz ter ainda uma novilha em seu sítio, deve abrir mão nos próximos dias por falta de condições para manter.  “Não dá mais para continuar tirando o dinheiro do bolsa família para mantê-la. Toda vez que a gente vai comprar o feijão e a farinha tem que comprar o farelo também. Não dá mais”, diz.
Há mais de 100 anos, em Os Sertões, Euclides da Cunha mostrou um Brasil novo, outro Brasil, o Brasil verdadeiro do Interior, que chocou, porque saltou na cara das nossas elites letradas. Cem anos depois, entretanto, muita gente continua sem escapar da morte severina, mesmo numa região com tanta água, como o São Francisco.

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