Por Maurício Rands*
A Lei 10.835/2004, de autoria de Eduardo Suplicy, instituiu a Renda Básica de Cidadania com o fito de atender as necessidades vitais de todos os residentes no Brasil, a ser implantada por etapas, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados. O Bolsa-Família pode ser visto como uma etapa nessa direção. E, agora, o auxílio-emergencial de R$ 600,00 aos informais e aos que estão no cadastro-único.
Durante a pandemia outros países também concederam auxílios emergenciais aos mais vulneráveis. Ninguém se opôs a esses auxílios. Viu-se que são possíveis e justos. No pós-coronacrise, pode se tornar inaceitável a volta ao velho modelo em que milhões de pobres, “invisíveis”, nada recebiam dos governos. Cresce a consciência de que a exclusão tornou-se eticamente insustentável e que uma renda básica universal é necessária. Urge, pois, que se analisem os modelos mais efetivos. E que se busquem mecanismos adequados de financiamento. Uma ideia do tamanho do problema nos é dada pelos custos das três parcelas do auxílio emergencial de R$ 600,00. Cerca de 63 milhões de pessoas autorizadas a recebê-lo. Gasto estimado de R$ 154 bilhões. Agora discute-se a sua extensão. O movimento “Renda Básica que Queremos” defende mais seis parcelas de R$ 600,00. A Câmara, mais duas de R$ 600,00. O governo acena com mais duas de R$ 300,00. Cada mês do auxílio já custou R$ 51 bilhões. O país vai sair da crise com um déficit fiscal agravado. Para mitigá-lo, não existe milagre. Impõe-se uma combinação de medidas: redução de despesas, aumento da arrecadação, redução dos juros da dívida. Para que não venha a inflação. Esse o desafio para que o auxílio emergencial evolua para alguma forma de renda básica para as dezenas de milhões na pobreza e na miséria.
O Bolsa-Família é experiência bem-sucedida. Mas claro que pode ser aperfeiçoado. Na pandemia, viu-se que milhões de informais e habitantes do Brasil profundo sequer recebiam o Bolsa-Família, ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC), ou o auxílio-educação, ou o abono salarial, ou o seguro-desemprego. Alguns desses benefícios limitam-se a quem está no mercado de trabalho formal. Por isso, há quem proponha uma unificação de todos eles. É preciso contemplar todos os trabalhadores informais precarizados que não são protegidos pelo sistema de seguridade social. Mesmo os que antes da pandemia tinham uma renda familiar um pouco acima das faixas máximas dos programas sociais. No final de 2019, o Brasil já batera o recorde da informalidade com 38,4 milhões de trabalhadores informais.
Ao lado da proposta de renda básica, fala-se de um ‘Keynesianismo Social’, como propõe Cristovam Buarque. Recursos públicos viabilizariam uma renda básica aos vulneráveis condicionada ao trabalho em obras públicas como a construção de escolas, unidades de saúde e sistemas de saneamento em suas comunidades.
Na ponta da receita para viabilizá-la, serve examinar a proposta de reforma tributária global apresentada dia desses por Piketty, Stiglitz, Zucman, Ghosh e Ocampo. Exortam-se os países a se coordenarem para evitar que os grandes gigantes continuem sem pagar impostos nos países onde operam. Combater o problema torna-se urgente no pós-pandemia. Os estados-nacionais se endividaram para combater a crise sanitária, econômica e social. Por isso, os sistemas tributários precisarão ser mais eficientes na ponta da receita. E os gastos públicos com o custeio precisarão ser racionalizados. A proposta avançada é de uma taxa mínima global de 25% sobre as corporações para que não lhes sejam compensatórias as manobras fiscais de transferência de lucros para jurisdições de baixa tributação. Problema que, aliás, tensiona as relações entre uma Europa que propõe a coordenação de países e os EUA, que sob Trump, preferem agir isoladamente. A União Europeia e a OCDE acabam de anunciar planos para um tributo sobre serviços digitais que incidiriam sobre “big techs” como Apple, Facebook, Google e Amazon. O imposto passaria a ser cobrado não mais pela presença física da empresa no país; mas, sim, pela atividade da empresa naquele mercado. Essas gigantes digitais hoje pagam em média 9,2% sobre os lucros, contra 23,2% das empresas de outros setores. A proposta defende uma taxação progressiva de serviços digitais e regras de transparência nos resultados das multinacionais e nas fortunas mantidas fora dos países onde elas foram geradas. Medidas nessa direção ajudariam a adoção de programas de renda básica em muitos países.
*Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
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