Em mais um indicativo de que a conta de luz seguirá pressionada pela seca sobre os reservatórios das hidrelétricas, o consumo de gás natural para geração de energia se aproximou no primeiro trimestre do patamar do mesmo período de 2015, quando o brasileiro pagou taxa extra durante todo o ano.
De acordo com dados da Abegás (Associação Brasileira de Distribuidoras de Gás Canalizado), as térmicas consumiram 31,2 milhões de metros cúbicos por dia de gás nos primeiros três meses do ano, alta de 24% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Em 2015, quando o país enfrentou a pior seca dos últimos anos, o setor elétrico consumiu 35,9 milhões de metros cúbicos por dia, segundo os dados da Abegás. Desde então, a demanda pelas térmicas não havia ultrapassado os 25 milhões de metros cúbicos, verificados em 2019.
Desde o fim de 2020, o governo vem usando toda a capacidade térmica disponível para tentar poupar água nos reservatórios das hidrelétricas das regiões Sudeste e Centro-Oeste, que terminaram o período de chuva com cerca de 34% de sua capacidade de armazenamento de energia.
A situação levou o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) a autorizar, há duas semanas, a autorizar a utilização de todos os recursos disponíveis “sem limitação nos montantes e preços associados”, o que leva especialistas a preverem um longo período com taxas extras na conta de luz.
Conhecida como bandeira tarifária, a taxa extra é cobrada para antecipar o pagamento das usinas térmicas, que são mais caras do que a energia hidrelétrica. Em maio, está vigente a bandeira vermelha nível 1, que acrescenta R$ 4,17 para cada 100 kWh (quilowatts-hora) consumidos.
Para especialistas, a situação só não é mais crítica porque a economia recuou e 2020, após o início da pandemia, mas há no mercado quem veja a crise energética como um possível gargalo à retomada da economia com o avanço da vacinação.
O diretor de Estratégia e Mercado da Abegás, Marcelo Mendonça, diz que a oferta de gás para as térmicas não é motivo de preocupação, já que o país conta com terminais de importação do combustível em navios, que podem ser acionados em caso de gargalos na produção nacional.
A Petrobras prevê para agosto parada para manutenção no sistema de Mexilhão, um dos principais produtores de gás do país, o que deve levar à paralisação de algumas usinas. A manutenção foi negociada com o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), que diz não ver impacto no fornecimento de energia.
“O único receio que a gente tem é justamente essa parada acontecer no momento mais crítico [da demanda]” diz Mendonça. “O mercado convencional tem que ser preservado”, defende. No primeiro trimestre, o consumo de gás pelas indústrias também teve alta, de 12,3%, em relação ao mesmo período do ano anterior.
O volume consumido pelo setor chegou a 28,4 milhões de metros cúbicos por dia, patamar semelhante ao verificado no mesmo período de 2019, antes da pandemia, em um sinal de que a atividade industrial vem se recuperando da crise.
Mendonça diz que em abril a tendência de alta se manteve, mas o mercado pode sentir o reajuste de 39% no preço do gás natural, imposto pela Petrobras no início de maio, percentual considerado “inadmissível” pelo presidente Jair Bolsonaro.
A alta acompanhou a recuperação das cotações internacionais do petróleo, mas teve grande impacto também da desvalorização cambial, que afetou também os contratos de transporte do combustível. Os repasses ocorrem de acordo com as legislações estaduais para o setor –em São Paulo, por exemplo, deve ocorrer no fim do mês.
Mendonça diz que as crises nos setores de comércio e serviços e a redução da mobilidade ajudam a segurar o crescimento do consumo, que em geral subiu 12,3% no primeiro semestre, chegando a 70,7 milhões de metros cúbicos por dia.
“O setor comercial, justamente porque bares e restaurantes continuam fechados, e o GNV, que é um segmento que atende muito a taxistas e aplicativos, dependem muito da mobilidade”, diz o diretor da Abegás.
A entidade questiona o modelo de despacho das térmicas no país, defendendo que o uso dessas usinas apenas em períodos de seca acaba sendo mais caro à sociedade do que um modelo que permitiria a geração em tempo integral de alguma capacidade termelétrica.
Mendonça argumenta que, além de poupar mais água nos reservatórios, esse modelo baratearia o custo da geração térmica e incentivaria investimentos na expansão da infraestrutura de produção e escoamento de gás, ajudando a ampliar a competição entre produtores.
“Hoje, a forma como as térmicas estão inseridas no modelo de geração não é compatível com a realidade”, afirma. “Estamos agora despachando as térmicas mais caras e menos eficientes, com custo de R$ 1600 reais, isso acaba encarecendo o sistema.”
O diretor da Abegás diz que a implantação de um novo indicador do preço do gás, apresentada pela Petrobras no início do mês, não resolve o problema do alto preço do gás no país. A estatal quer começar a oferecer contratos indexados pelo preço do gás nos Estados Unidos, e não só pela cotação do petróleo.
“Sempre é positivo ter mais opções”, afirma. “Mas está mudando o indexador sem mudar o preço inicial, então não vai ter muita alteração.” As distribuidoras propõem a realização de leilões de gás com entrega em cinco anos, como ocorre com a oferta de energia no país, para fomentar investimentos e atração de novos fornecedores.
Fonte: Folha-PE