Por Antônio Campos*
Mais uma grande perda para a cultura pernambucana de um vulto que reunia numa só pessoa qualidades, raras, que não cabem num só artigo de Jornal. Perda causada por um mal sem precedentes que veio para destruir o indivíduo e a humanidade – mais de seis bilhões de pessoas – uma humanidade sob ameaça, que não soube construir na geometria da história, nos hábitos e costumes das gentes, o seu futuro, na ilusão de que tem sido “extraordinária”, no contemporâneo, a explosão científica e tecnológica.
Refiro-me, com grande tristeza, à morte pelo novo coronavírus, do meu caro amigo, mestre universitário de muitos saberes jurídicos, criminalista com notória experiência na disciplina do Direito Penal, sendo nessa especialidade autor de uma obra reconhecida como fundamental nos meios acadêmicos; meu colega nas lides da advocacia e companheiro ilustre na Academia Pernambucana de Letras: Roque de Brito Alves.
Em todos os caminhos percorridos ao longo de muitos anos, por esse grande humanista, ele que era um leitor exigente e estudioso incansável dos temas que coroaram a sua carreira, Roque de Brito Alves deixou a marca de um homem cordial, solidário silencioso, e pontual com os amigos, à grande causa da cultura que ele defendia com todo fervor e competência nas salas de aulas, nas suas conferências e debates nos meios acadêmicos, dentro e fora do Brasil, um deles, como palestrante, em 2019, na Universidade de Sorbonne. Não foi esta a primeira vez, ele não era um desconhecido naquele famoso centro acadêmico francês. A sua última apresentação como conferencista, cito-a para ilustrar a sua pluralidade de saberes não só jurídicos, a que tive a honra de assistir como ouvinte e presidente da Fundação Joaquim Nabuco, foi durante a 422ª edição do Seminário de Tropicologia, núcleo cultural da instuição vinculada ao MEC.
Era um tema ousado, eis uma característica desse mestre do direito: a ousadia, as descobertas, o ineditismo, inclusive numa disciplina como a Literatura Comparada, uma especialidade restrita às salas acadêmicas, e que teve sua contribuição didática no Brasil, seu pioneirismo, com Tasso da Silveira, Antônio Cândido, Tania Franco Carvalhal, Silviano Santiago e Roberto Schwarz. Fiquei curioso, à espera desse evento, recomendei apoio, convidei amigos para ouvir como seriam vistos os arquétipos da tragédia shakespeariana na obra de Agatha Christie, sobre o que Dante Alighieri (1265-1321) e o Marquês de Sade (1740-1914) tinham em comum. Sem falar dos elementos que ligam o regionalista Jorge Amado (1912-2001) ao dramaturgo William Shakespeare (1564-1616). Era o tema da palestra.
Na busca do saber e suas múltiplas abrangências, Roque fazia lembrar o seu irmão, outro grande mestre do direito e orador fluente, meu saudoso amigo Antônio de Brito Alves. Na tribuna, era imbatível.
Deixei por último a lembrança do seu lado de colecionador de porcelanas antigas, sobretudo europeias, sua outra paixão, trazidas de suas numerosas viagens. Vejo sempre parte dessa coleção quando visito o Museu do Estado de Pernambuco, que a recebeu por doação. Fico a pensar, atento a cada peça, que o elemento de beleza, como um simples jogo de chá, que acha-se exposto, nunca é, apenas, nem será, um simples jogo de chá. É um devaneio, uma metáfora, bem sei, mas sem este sentimento, o verdadeiro colecionador, como o meu homenageado, deixará de criar um todo luminoso e coeso, como a vontade de eternizar-se nessas aparentemente frágeis peças, sejam ou não de porcelana, não obstante a finitude da individualidade regida pelas categorias do espaço e do tempo. Um dos grandes mistérios da existência humana.
Sabe-se que a paixão de Roque pelas porcelanas antigas era uma herança de seu pai. Sua coleção talvez fosse uma continuidade dos afetos, a perpetuação simbólica de uma vida, o retorno pela via do acaso e seus indeterminismos, ao primado telúrico de um tempo vivido.
*Advogado licenciado, acadêmico e presidente da Fundaj