Já é sabido que mudanças no ambiente podem influenciar a saúde das pessoas e dos animais. A poluição do ar, água e solos contaminados, estiagem prolongada e outros fatores ambientais afetam tanto o desenvolvimento quanto questões básicas, como o consumo de água e oxigênio.
Porém, mensurar o efeito direto das mudanças climáticas sobre órgãos era algo visto quase como impossível pelos cientistas. Até agora.
Pela primeira vez, um grande estudo conseguiu identificar mais de 200 mil casos de doenças renais causados diretamente por influência da temperatura. Além disso, as variações de temperatura extremas em um mesmo dia -como noites frias e calor intenso durante o dia- podem afetar o organismo em até dois dias subsequentes.
Para cada 1?C de elevação da temperatura, o risco relativo encontrado para a ocorrência de algum tipo de doença renal aumenta 0,9%. Considerando a incidência mundial de 7,2% de doença renal crônica, isso significa que um aumento de 1,5?C na temperatura global -como reportado no último relatório do IPCC–pode levar esse risco para 9% -ou nove em cada cem pessoas. O risco para desenvolver algum tipo de problema renal foi maior em crianças de zero a 4 anos é maior, de 3,5% para cada aumento de 1?C de temperatura, em mulheres (1,1%) e em pessoas com mais de 80 anos (1%).
A pesquisa, a qual à Folha teve acesso, foi publicada na edição deste domingo (31) da revista The Lancet Regional Health – Americas.
O estudo, conduzido com uma parceria entre a Universidade de Monash, em Melbourne, na Austrália, e o Instituto de Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo, avaliou dados de 2.726.886 hospitalizações por algum tipo de doença renal entre os anos 2000 e 2015 em 1.816 municípios brasileiros.
O risco chamado atribuível (isto é, que ocorre de fato em um indivíduo, diferente do risco relativo calculado para uma população) de doença renal associada com aumento de temperatura foi de 7,4%, equivalente a 202.093 casos.
Para fazer a associação entre temperatura e danos nos rins, os pesquisadores avaliaram o período histórico de temperatura de cada uma das cidades e cruzaram com os registros de admissões hospitalares por doença renal no SUS (Sistema Único de Saúde).
Após analisar as séries históricas, os pesquisadores ajustaram os modelos para diferentes variáveis, como idade, sexo, renda salarial e local de residência. “Como os municípios eram avaliados com eles próprios, nós conseguimos identificar a diferença na temperatura influenciando diretamente o caso de doença renal”, explica a meteorologista, pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP e colaboradora da Universidade de Monash, Micheline Coelho.
O médico patologista e professor do IEA-USP, Paulo Saldiva, que também participou do estudo, explica como o calor afeta diretamente os rins e como o efeito é maior em crianças e mulheres.
“Variações de calor podem elevar o risco de ‘descompensar’ doenças crônicas preexistentes, como diabetes, pressão arterial. Além disso, tem ação também com a regulação de transpiração, volume de água absorvido e produção de urina”, diz.
“Crianças muito novas ainda não têm o sistema renal bem desenvolvido e a relação de massa superfície favorece as trocas de calor com o ambiente. Já as mulheres, especialmente as puérperas, têm maior propensão a infecções urinárias, o que, em um ambiente de desidratação por calor, pode afetar os rins.”
O fato de ter incluído os 1.816 municípios que concentram quase 80% da população brasileira permite fazer um recorte adequado da chamada epidemia de doença renal crônica no país. “Esse é um dos poucos estudos em larga escala que mostra os efeitos do aquecimento global sobre as doenças renais, e só foi possível fazer porque temos a base de dados do SUS”, diz Saldiva.
Isso permitiu também traçar um panorama do risco por região do país. “No Sudeste, o risco foi menor, de 0,7%, enquanto a região Norte apresentou o maior risco, de 2,2%. Isso era esperado porque a região Norte é mais quente e não só quente, é também úmida, e a umidade afeta como vamos absorver o calor no nosso corpo”, afirma Coelho.
No Brasil, a doença renal crônica causa anualmente 2,4 milhões de mortes, e estima-se que mais de dez milhões de brasileiros tenham a doença, número que é possivelmente subnotificado. A prevalência de doença crônica renal nos EUA é de 110 a cada cem mil habitantes e, no Japão, 205 a cada cem mil habitantes.
Coelho já vinha pesquisando nos últimos dez anos as relações do clima e da temperatura nos humanos, área conhecida como biometeorologia. Segundo a Organização Mundial da Saúde, de 90 mil a 255 mil novas mortes por doenças crônicas poderão ser ligadas diretamente ao aumento da temperatura global até 2030 e 2050, respectivamente.
“Quando a gente faz uma série temporal de 15 anos como essa e desenvolve um modelo epidemiológico em cima, conseguimos captar a correlação daquela doença levando em consideração a variação de temperatura. Assim, é possível, a partir dessa análise, quantificar quantas mortes seriam evitadas se não houvesse a mudança de temperatura”, diz.
Fonte: Folha-PE
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