PREFEITURA DE TRINDADE

SARGENTO EDYMAR

01 abril 2019

Games: reflexões sobre os impactos dos jogos na formação dos jovens

Os recentes ataques em Suzano, São Paulo, e em Christchurch, Nova Zelândia, reacenderam o debate sobre a influência dos games no comportamento de adolescentes
Demonização do videogame refletida em massacres
Demonização do videogame refletida em massacresFoto: Jose Britto/Folha de Pernambuco
"Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que chamamos cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas". A metáfora do escritor José Saramago, no livro "Ensaio sobre a cegueira", ganha ainda mais sentido quando lida em meio aos recentesataques com armas praticados por extremistas

Um no Brasil, em Suzano, na Região Metropolitana de São Paulo; outro em Christchurch, na Nova Zelândia. Nos dois casos, além de tantos outros, um questionamento voltou a ganhar notoriedade. Os casos Suzano e Christchurch reacenderam o debate da relação entre games violentos e comportamentos agressivos e extremistas - o debate sobre se os jogos seriam capazes de levar pessoas aparentemente sociáveis a ferir ou matar inocentes. 
Cartaz passa a mensagem de que apesar das diferenças 'pertencemos a mesma raça humana'
Cartaz passa a mensagem de que apesar das diferenças 'pertencemos a mesma raça humana' - Foto: Peter Parks/AFP
Essa ideia é confrontada por dados de uma pesquisa conduzida pelo psicólogo experimental e diretor de pesquisa da Universidade de Oxford, Andrew Przybylski, e a psicóloga Netta Weinstein. O estudo, realizado com mais de mil jovens britânicos, com idades entre 14 e 15 anos, sinaliza que games violentos não apresentam nenhuma relação direta com o desenvolvimento de comportamentos agressivos
A pesquisa utilizou dados subjetivos e objetivos para medir o nível de agressão e violência em jogos. O método de análise também se baseou em entrevistas feitas com os adolescentes que jogam e seus pais, no intuito de medir o nível de comportamento agressivo nos jovens. Przybylski disse que a ideia de que jogos violentos incitam casos reais de violência é comum, mas que não há comprovação que confirme essa convenção. 
Um total de 1596 jogos foram codificados com sucesso para o estudo detectar o nível de violência. Desses, aproximadamente dois de cada três jogos foram transcritos com conteúdos de violência, e classificados na escala 1 (um). Dentre o número total de jogos avaliados, esse quantitativo fica em torno de 1033. Enquanto os demais jogos, aproximadamente 560, não apresentaram conteúdo de violência, codificados, assim, na escala 0 (zero). 

Os jogadores foram perguntados, em uma escala de zero a oito sobre a quantidade de horas que reservam aos jogos, em uma variação de codificação de zero (0) horas a sete (7). Seguindo esse critério, o estudo aponta que os participantes moderadamente engajados em jogos violentos reservam cerca de duas horas ao videogame em dias normais. Apesar disso, a pesquisa não identificou aspectos diretos que associem a influência desses jogos à construção da agressividade no comportamento de adolescentes.
"O jogo pode servir como uma catarse, no qual, naquele espaço, o adolescente e a criança podem expressar sua agressividade e suas emoções, de forma que ela não se prejudique socialmente. Então, é uma forma de colocar para fora. Outra vertente, é, de fato, a influência que esses jogos podem ter nos comportamentos (dos jovens). No entanto, essa influência não pode ser levada em consideração isoladamente", explica a psicóloga cognitivo-comportamental Karine Torres.
"No caso de Suzano, precisamos considerar questões multifatoriais, como os aspectos genéticos, componentes e traços da personalidade, história do indivíduo, psicopatologias e as comorbidades - a depressão, geralmente, surge acompanhada de uma comorbidade, ou seja, ela é apresentada ao indivíduo juntamente à ansiedade ou algum transtorno bipolar", complementa.
Karine Torres, psicóloga cognitivo-comportamental
Karine Torres, psicóloga cognitivo-comportamental - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco
Comportamento
O estudante Pedro Aleluia, 18, joga videogame desde os oito anos de idade. Ele acredita que grupos não familiarizados com os jogos tendem a defender a ideia de que os games influenciam diretamente no comportamento dos jovens. "As pessoas tendem a culpar os jogos. É muito sem sentido uma pessoa que está de fora [do universo dos games] julgar algo que não entende", defende. 
Os jogos mais consumidos pelo estudante são Battlefield, Counter Strike, Quake e Unreal Tournament - todos fazem parte do campo de jogos de tiro. Pedro, no entanto, considera que os fatores que levam o indivíduo a realizar um ataque em massa não perpassa pela dinâmica oferecida por games. "Essa questão vai muito mais da criação do que da influência de jogos", comenta. 
Pedro joga videogame desde os 8 anos de idade
Pedro joga videogame desde os 8 anos de idade - Foto: Jose Britto/Folha de Pernambuco
Olegário Francisco, 56, pai do jovem, acredita que os ataques não foram influenciados por jogos de tiro. Apesar disso, o funcionário público não esconde o receio de ver seu filho jogando esse tipo de game em meio aos ataques em Suzano e em Christchurch. "Essas pessoas já têm um histórico familiar de violência dentro de casa. Talvez a pessoa não tenha uma personalidade boa, uma boa educação, uma família bem estruturada. Meu medo é que isso se torne realidade na vida do meu filho e ele saia por aí atirando", desabafou. 
Olegário descreveu que nunca presenciou comportamento agressivo, de isolamento ou indícios de depressão em Pedro. "Uma pessoa com uma arma na mão pode ser perigoso. A nossa educação é muito baixa. Se nesses países educados já estão fazendo isso, imagine aqui. Educação é primordial", ressalta.
A psicóloga Karine Torres lembra a importância da presença familiar na vida de crianças e adolescentes. "Uma das coisas mais importantes, e a qual estamos esquecendo, é o diálogo. Os pais precisam dialogar com seus filhos; é preciso que os pais monitorem. Isso é cuidado, afeto, educação. A relações que o ser humano tem estabelecido no campo 'virtual' são bem reais", destaca.
Pedro Aleluia, estudante
Pedro Aleluia, estudante - Foto: Jose Britto/Folha de Pernambuco
Apesar de muitas vezes serem associados, exclusivamente, ao mundo do entretenimento, os jogos de videogame podem acirrar alguns mecanismos desejados, também, fora do universo virtual. Um desses desejos é a competitividade. “O jovem, recebe o material dos jogos e entra naquela realidade. Muitas vezes o indivíduo está se firmando, ainda é imaturo. Então ele pega a competição inserida nesse espaço, quer seja de fundo agressivo, e toma aquilo como sendo sua identidade”, explica a psicóloga clínica do Hapvida, Sílvia Cerqueira. 
Ainda nesse contexto, a psicóloga diz que há o desejo de o jovem se colocar no mundo de forma agressiva, porque no universo dos jogos ele está ganhando. “Isso traz um status para a autoestima que geralmente está em formação e ainda é baixa. O mundo real também tem essa competição, mas por outros meios. O jovem se apodera de uma realidade virtual como uma forma real. Aí é onde mora o perigo”, alerta Cerqueira, reforçando que quando o adolescente já possui propensão da própria personalidade, do meio em que ele é inserido, e não tem embasamento familiar e suporte emocional, a expressão da agressividade ganha mais notoriedade nesse indivíduo. 

“O cérebro, altamente estimulado, cria um choque de quando ele vem para a realidade e de quando está no ambiente virtual. Qualquer ação dentro do universo dos games é uma projeção. Quando o jovem se utiliza disso, ele está projetando seu mundo interior”.
ProibiçõesBully e Postal. Dois jogos com narrativas e espaços diferentes, mas que tiveram sua comercialização proibida no Brasil durante certo período. O primeiro, que pertence à empresa Rockstar, foi banido em 2008, por ter como protagonista uma criança que ingressa em uma nova escola e sofre bullying, praticado pelos colegas. A comercialização do jogo voltou a valer em 2016. Já Postal excede na violência. É um jogo de "mundo aberto", que se assemelha a GTA, e também teve sua venda proibida, mas é um dos vários exemplos de jogos de tiro que teve o banimento revogado no Brasil.
Os games como possibilidade de futuro
Os games podem ser, em alguns casos, uma escapatória promissora para alguns jovens. Eduardo Rodrigues, 17, conhecido como juninho no bairro dos Coelhos, onde mora, no Centro do Recife, entrou no universo dos games na adolescência. Com 13 anos, o estudante, que neste ano tenta uma vaga no curso de Ciência da Computação, preferiu deixar de brincar na rua para vivenciar um novo mundo, no qual as armas aparecem apenas no ambiente ficcional. 
"Minha mãe mora na divisa onde duas facções brigam pelo território. Uma vez eu estava na rua, perto de casa, e começou um tiroteio. Foi a primeira vez que vi uma arma na rua. Depois disso, decidi que não ficaria mais na rua, e sim em casa, jogando videogame. No início, foi uma forma de esquecer a realidade de violência", lembra o estudante. 
Para juninho, os games vão além do entretenimento. "Aprendi um pouco de espanhol através dos jogos. Jogava Transformice com um chileno e um colombiano. Todos os dias fazíamos vídeo chamada. A partir do jogo desenvolvi e continuo desenvolvendo a escrita no espanhol", destaca. 
O jovem relata que através dos jogos descobriu coisas novas sobre o mundo e passou a ter uma perspectiva de futuro. "Vi no jogo um pouco do que estava lá fora, no exterior, e aprendi a conviver com mais pessoas do mundo virtual. Me fez conhecer pessoas de outras culturas, novos idiomas. Não sabia onde ficava Marrocos e hoje sei", diz. "Fica na África. Mais especificamente próximo ao deserto do Saara, com cerca de 40 milhões de habitantes. Tem um time lá chamado Raja CasaBlanca, que virou nome de uma avenida em Minas Gerais por ter derrotado o Atlético Mineiro no mundial de clubes de 2013", descreve juninho. 
Eduardo Rodrigues, 17, estudante
Eduardo Rodrigues, 17, estudante - Foto: Kleyvson Santos/Folha de Pernambuco
"O motivo de fazer Ciência da Computação é pelo fato de me oferecer uma boa base de matemática para criar jogos e aplicativos para a sociedade. A indústria de jogos é uma das áreas que mais crescem na área de tecnologia da informação. Meu foco é desenvolver meu conhecimento para a sociedade, desenvolvendo jogos, criando aplicativos para ajudar a sociedade", explica o adolescente sobre a escolha do curso.
A psicóloga Karine Torres alerta para a demonização da tecnologia e para a forma que os indivíduos a estão consumindo. "A tecnologia produz subjetividades. Não podemos colocá-la como o demônio da história, porque, de fato, não é a tecnologia que provoca esse tipo de comportamento, mas é o uso inadequado que se faz dela", opina.
Violência como espetáculo: jogos e medoEm diferentes períodos da história, guerras e duelos protagonizaram espetáculos que existiam para entreter o povo, em arenas ou na rua. O Coliseu, localizado em Roma, é um exemplo histórico disso. Hoje, no Brasil, essa violência aparece, de forma muitas vezes naturalizada, nas relações humanas e no meio social. 
"A gente vive em um momento em que a violência volta a ser muito estimulada. Não só a violência, mas o próprio uso de armas. A gente está discutindo atualmente o estatuto do armamento, e há quem compreenda que ter arma é uma forma de evitar problemas", explica Edina Granja, professora de Psicologia da UniFBV. "A sociedade vem alimentando a intolerância de forma geral, e abrindo pressuposto para que se bata, para que se mate e para que fira. A intolerância parte como uma onda, que vem reacendendo no país", opina. 
debate sobre os casos Suzano e Christchurch circula, também, em torno da culpabilização dasfamílias dos autores dos ataques. "Mais do que os jogos, há um abandono, que, muitas vezes, é familiar e social. Me refiro à dificuldade dos pais em estarem presentes no cotidiano dessas crianças e adolescentes. A dificuldade do Estado em se responsabilizar por ofertar uma educação de qualidade, pautada não só no ensino importante, mas em valores como respeito. Isso já é um abandono social muito potente", explica Edina. 
Encarar a violência como um aspecto real do país é um desafio antigo para o brasileiro. Como sugere a história de Juninho, o medo que circula nas ruas faz parte de uma estrutura, uma cultura territorializada. Os videogames fazem parte desse contexto. "Jogos estão relacionados à violência em condições bem específicas. O jogo não é nem mocinho nem vilão. Até cinco anos atrás, os jogos eram um paradigma de classe média e estavam relacionados a jovens-adultos brancos, de classe média, mesmo no Brasil", relaciona Carolina Dantas, pesquisadora de mídias digitais da UFPE. 
A pesquisadora conta que a indústria de jogos é formada, majoritariamente, por homens, e que esse ambiente muitas vezes reflete a violência da sociedade. "O jogo é um reduto ideal para esconder o que a gente teme na sociedade, a violência. O desejo de violência masculino. O jogo de violência existe não é para exaltar a violência, mas para a gente guardar em um cantinho obscuro da nossa mente o desejo de violência. O desejo de violência masculino está lá, por isso tantos jogos de arma, de cortar cabeça, de matar vampiros, porque a gente joga essa tensão de morte num lugar onde ela não vai ofender ninguém", finaliza Dantas. 
Segurança
Diferente do Brasil, por vários anos, a Nova Zelândia variou entre o 1º e 2º lugar na lista de países mais pacíficos do mundo. Ocupa o 1º lugar de país com menor índice de analfabetismo, com apenas 1% de sua população. 
Resultados do último Índice de Paz Global (GPI), realizado em 2018 com 163 nações, mostram que a Nova Zelândia ocupa a 2ª posição no ranking de país mais pacífico do mundo, ficando atrás apenas de Islândia, que ocupa a primeira posição desde 2008. 
O índice também apontou que quatro dos nove continentes do mundo apresentaram crescimento no combate à insegurança. Dentre eles, a América do Sul registrou maior desenvolvimento em comparação às outras regiões continentais, apresentando crescimento, particularmente, em segurança social e segurança estadual. O Brasil subiu no ranking em comparação a 2017, mas não chega perto dos países vizinhos. Na média mundial, o país está na posição 106, tendo apresentado um aumento de duas posições em relação ao GPI de 2017. 
Na América do Sul, o Brasil ocupa a 9º posição (de onze), ficando à frente apenas de Venezuela (143º no índice mundial) e Colômbia (145º), em uma distância de 80 posições do Chile, registrado como o país mais pacífico da América do Sul, ocupando a 26º posição. 
Dentre tantas, uma das ações que reafirmam a elástica diferença entre os sistemas de segurança e educacional entre Brasil e Nova Zelândia é a iniciativa tomada pelos neozelandeses. Na última terça-feira (18), cerca de 40 pessoas entregaram, voluntariamente, suas armas de fogo à polícia local, na intenção de contribuir com as investigações sobre o massacre às duas mesquitas em Christchurch, capitaneado pelo australiano Brenton Tarrant
Homenagem às vítimas do ataque em Suzano
Homenagem às vítimas do ataque em Suzano - Foto: Nelson Almeida/AFP
Na quinta-feira (21), o governo da Nova Zelândia anunciou a proibição da venda de armas semiautomáticas estilo militar e de fuzis no território kiwi. A primeira-ministra, Jacinda Ardern, disse que a comercialização de alguns tipos de fuzis, na posse de caçadores do interior do país, continua em vigência. Nova lei entrará em vigor no dia 11 de abril.

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