Visita de secretário de Defesa é permeada por incômodo dos EUA com alta nas atividades de Pequim com países na América do Sul
Henrique Gomes Batista –O Globo (Enviado Especial)
Enviado especial a WASHINGTON E BRASÍLIA - A crescente influência não só econômica, mas militar da China na América Latina marca o início da primeira viagem de James Mattis, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, à América do Sul. Com a visita que começa em Brasília, ele encontra uma região muito diferente da existente em 2014, quando Chuck Hagel foi o último chefe militar americano recebido na América do Sul.
Os asiáticos já contam com uma base de monitoramento de satélites na Argentina e negociam o fornecimento de insumos à indústria bélica brasileira. Embora oficialmente o objetivo da viagem a Brasil, Argentina, Chile e Colômbia seja reforçar laços com parceiros históricos, o debate sobre Pequim esteve presente já de cara.
— Temos visto China e Rússia atuando dentro da América Latina. Existe mais de uma maneira de perder soberania no mundo. Isso ocorre não apenas com a violência, pode ser com presentes e grandes empréstimos — afirmou Mattis a jornalistas que o acompanhavam em seu voo a Brasília, quando disse que quer países “livres, democráticos e independentes” no continente. — Eu não estou olhando o que as outras nações fazem como algum tipo de ataque contra nós. Estas são decisões soberanas, e eu somente me preocuparia se estes países (latino-americanos) estiverem perdendo certo grau de soberania por causa das decisões próprias ou de outras nações.
Mas o alinhamento ideológico dos principais países da região pode ajudar os Estados Unidos a reafirmarem sua influência, se Mattis conseguir avançar em propostas concretas de parcerias, compras e desenvolvimento tecnológico. O apelo pelos laços históricos esteve presente na conversa que ele manteve na viagem de Washington a Brasília.
— Não estou interessado em reconquistar o controle destes países (da América do Sul) pois acredito que isso nunca existiu. Eu acredito na parceria, e não em controle — garantiu. — Mas citando a Argentina, gostaria de lembrá-los de quem os ajudou quando eles tiveram o submarino desaparecido (no fim do ano passado): os americanos. Fomos os mais rápidos e com a melhor tecnologia do mundo, agimos da mesma forma que se este fosse um submarino americano.
A maior prova desta influência chinesa está na Patagônia. O país asiático tem em Quintuco, na província de Neuquén, uma estação para controle de satélites e missões espaciais. A base, que começou a operar em março e oficialmente não tem fins militares, é vista com desconfiança pelos americanos. Herança dos anos de Cristina Kirchner no poder, a instalação foi negociada em segredo com Pequim e causa estranhamentos na relação bilateral entre Buenos Aires e Washington.
ESFORÇO POR NOVOS CANAIS DE COOPERAÇÃO
No Brasil, além de dominar cada vez mais setores estratégicos como a geração de energia elétrica, a China está se preparando para fornecer insumos militares à indústria bélica brasileira. Atualmente o Brasil não tem autorização para comprar produtos como combustíveis sólidos para foguetes dos americanos e, caso não se avance em um acordo, as empresas terão que buscar esses e outros componentes químicos de chineses ou até de russos.
As demandas devem ser altas. Os brasileiros, segundo fontes envolvidas nos preparativos para a visita de Mattis, pedirão, além de acesso a produtos e tecnologias, mais integração, com a ampliação dos exercícios militares conjuntos. O objetivo é criar novos canais e ampliar a “operabilidade” entre os dois países. Além disso, temas como o acordo para a base de lançamento de satélite de Alcântara, considerado fundamental para que o Brasil tenha acesso ao mercado bilionário do envio de satélites ao espaço. Parado desde 2003, o acordo recebeu no início do ano o sinal verde das autoridades americanas. As negociações estarão entre os temas que serão debatidos na segunda-feira nos encontros de Mattis com Aloysio Nunes Ferreira, ministro das Relações Exteriores, e com o ministro da Defesa, o general de reserva Joaquim Silva e Luna, em Brasília.
Mattis prometeu ouvir de forma aberta as demandas de todos os países. Elogiando o Brasil, lembrou da histórica parceria entre as duas nações, citando a luta conjunta na Segunda Guerra Mundial.
— Em países como o Brasil não há dúvidas de que nossa relação militar é forte e transparente e que não nos vemos como competidores, mas como parceiros — disse.
Para Peter Hakim, brasilianista e presidente emérito do centro de estudos Inter-American Dialogue, o que se vê dos americanos é uma preocupação semelhante à vivida nos anos 1960 após a revolução socialista em Cuba, mas agora focada nos chineses:
— Não está claro o que os americanos podem oferecer melhor que os chineses. Não há avanço no comércio, na infraestrutura ou em linhas de financiamento como foram feitos naquela época — avaliou ao GLOBO.
IMPASSES EM ECONOMIA E NARCOTRÁFICO
O americano, contudo, também deverá ser muito questionado sobre o tema e sobre a proposta da compra da Embraer pela Boeing na terça-feira, quando dará uma palestra e responderá a perguntas de estudantes da Escola Superior de Guerra na Urca, no Rio.
Também é esperado que ele fale mais da situação da Venezuela — tema presente em todos os países da visita — e do combate a narcotraficantes pelas Forças Armadas. O tema ganhou importância depois que a Argentina aprovou uma lei que permite que os militares enfrentem o tráfico internacional, e deverá ser tratado nas reuniões de quarta-feira em Buenos Aires.
‘O secretário vem propor integração e parcerias, e o resto do governo, principalmente o presidente, acena com muros e sobretaxas de produtos. Isso mostra como o governo americano está sem foco na América Latina’
- ERICK LANGERprofessor do Centro de Estudos Latino-americanos da Georgetown University
— Em ambos os assuntos, Mattis deve apresentar alguma proposta, mas sem que isso faça parte de uma estratégia maior. O secretário vem propor integração e parcerias, e o resto do governo, principalmente o presidente, acena com muros e sobretaxas de produtos. Isso mostra como o governo americano está sem foco na América Latina — afirma Erick Langer, professor e ex-diretor do Centro de Estudos Latino-americanos da Georgetown University.
No Chile, país que cada vez mais tem intensificado exercícios militares — sobretudo da Marinha — no Pacífico, há a tentativa de criar um novo nível de relação com os EUA. O modelo sonhado pelo presidente Sebastián Piñera, segundo fontes próximas das negociações, é repetir o modelo colombiano, onde os americanos colocam recursos pesados para o combate ao narcotráfico e às guerrilhas. O presidente chileno deverá se encontrar com Mattis na quinta-feira.
E, numa Colômbia agora governada por Iván Duque, novas tensões devem surgir: apesar de o país ter entrado na Otan como membro observador — algo sem muita função prática, mas com forte carga simbólica —, há uma maior resistência ao uso de pesticidas pelos americanos para acabar com as plantações de coca no país. Em um novo governo que prometeu rever até o tratado de paz com as Farc, a histórica relação com os EUA, vista como um caso de sucesso, tende a ser cada vez mais questionada.
(*O repórter viajou a convite do Departamento de Defesa)